sábado, outubro 28, 2006

Há 15 anos atrás...

Setúbal, Segunda-feira, 28 de Outubro de 1991.
E tudo começou por volta das 08:30h...
Tenho 12 anos e estou sozinho em casa a tentar dormir - os meus pais já confiam em mim -, só tenho aulas ao final da manhã. O papi saiu para o trabalho ao início da madrugada, como agora é costume, começou há pouco a trabalhar na construção de uma ponte qualquer no interior centro. A mami saiu de casa pouco antes das 07h, tem que estar na Cantina às 08h, mas antes tem de ir buscar uma amiga à Fonte da Telha. O mano também já saiu de casa, tem aulas na Escola Comercial logo às 08h. Acordo da minha tentativa de dormir com o primeiro telefonema. - Terá sido, talvez, a partir daqui que passei a custar tanto a deixar-me dormir? - Teve assim início o dia mais longo da minha vida, o primeiro dia da minha semana mais longa. É a amiga da minha mãe:
- A tua mãe?
- Não sei! Ainda não chegou? - respondo.
- Não! - diz admirada.
- Mas ela já saiu faz tempo! - digo.
- Está bem. Vou continuar aqui à espera.
Volto para a cama, enrosco-me no edredon dos ratinhos. Mais uns minutos e o telefone volta a tocar:
- Estou a falar para a casa da D. Maria Ana? - pergunta-me uma voz feminina acautelada.
- Sim! - digo eu aborrecido.
- Fala A. da Polícia. Estou a falar com? - inquire-me a mesma voz.
- Luís Alexandre, o filho mais novo... - respondo a medo.
- A tua mãe está no Hospital de Palmela...
Interrompo dizendo: - Como? No Hospital de Palmela? A fazer o quê?
Continua a voz feminina: - A tua mãe sofreu um acidente...
Interrompo outra vez: - Mas é grave?
Responde a tentar acalmar-me: - Não, não é grave. Queremos é que te acalmes. Já falámos com os teus avós e eles estão quase a chegar. Queremos que fiques em casa à sua espera.
Assim que desligam o telefone corro para o quarto e visto qualquer coisa. Antes de pegar nas chaves e na carteira para sair vou à cozinha ver na porta do frigorífico o horário escolar do mano. Dirijo-me então a correr para a Escola Comercial para falar com o meu irmão. Ainda são uns 10 minutos. Com toda a velocidade que consigo atingir percorro o Jardim do Bonfim de uma ponta à outra. Chego à escola, deconhecida para mim, e vou directo para a porta da sala onde é suposto o meu irmão ir ter aula. Ouço o primeiro toque de entrada. O meu irmão acaba de entrar, vê-me e admirado vem ter comigo:
- Que fazes aqui? Não vês que vou ter aula agora...
Ofegante digo: - Ligaram lá para casa da polícia a dizer que a mãe estava no Hospital de Palmela...
- Que aconteceu?!? - diz-me a medo.
- Parece que teve um acidente. Já falaram com os avós e eles devem estar a chegar a nossa casa.
O meu irmão pede à professora para sair. Calado, pega na bicicleta e desaparece rua fora. Triste vou para casa em passo calmo. Ao chegar a casa deito-me outra vez, vestido, sem me importar com nada. Tocam à porta. Não sei se passou muito ou pouco tempo. São os meus avós paternos, finalmente chegam. Ao entrar a minha avó Gina diz muito calmamente: - A tua mãe... - não a deixo terminar a frase e corro corredor fora até ao quarto. Tomo consciência do pior. Enfio-me debaixo do edredon dos ratinhos, é o meu refúgio, e começo a chorar. A minha avó Gina entra no quarto com prudência e vê-me deitado na cama do meu irmão. Chega perto de mim, senta-se na beira da cama e afaga-me o cabelo loiro - como adoro um bom cafuné. Passam-se alguns minutos. Saímos de casa e dirigimo-nos no Corolla do meu avó para o Hospital de Palmela. Conto aos meus avós que fui ter com o mano à Escola Comercial e que ele saiu de bicicleta sem me dizer onde ia. Ficam ainda mais preocupados. Os 15 a 20 minutos entre Setúbal e Palmela são precorridos em absoluto silêncio. Ao chegarmos somos conduzidos a uma contígua sala de espera. Lá encontro o meu irmão a escorrer suor, lavado em lágrimas, nos braços da minha tia Laura, a ser examinado por uma enfermeira. Detesto hospitais, já passei tempo suficiente dentro deles. Vou até à rua apanhar ar, a minha avó Gina vem comigo. Não sei o que fazer. Não sei o que dizer. Um estranho sentimento apodera-se de mim. Não será tudo isto um pesadelo? É a dura realidade. Nisto chegam os meus avós maternos, com a minha tia Flor na carrinha da Junta de Freguesia. Ourique ainda é longe, os meus avós e a minha tia não conduzem e tentaram vir o mais depressa que lhes foi possível. Algumas horas depois, vamos todos para Setúbal, cheios de fome, as duas famílias unidas numa mesma dor. Chegamos a casa e já lá está a minha tia-avó Amália, esteve a fazer uma canja de massa com galinha caseira - como me sabe bem o toque final da salsa. Tentando abstrair-me, como se fosse possível, do que nos aconteceu, sento-me na marquise. Ali fico a tentar sossegar o meu espírito. O meu coração literalmente sangra. Absorto ali estou e ali fico. Algum tempo depois vejo a meio da rua um táxi, vem direito ao nosso prédio. Saio porta fora, algo me chama à rua. Vejo o meu pai dentro do veículo a pagar ao taxista. Corro até ele. O meu pai sai do carro. Ainda antes do táxi dar a volta para se ir embora digo friamente: - Pai! A mãe morreu! - o meu pai deixa cair ao chão o casaco que trazia na mão. Tudo isto aconteceu há 15 anos atrás. Tudo poderia ter sido diferente. Os segundos seguintes, os minutos seguintes, as horas seguintes, os dias seguintes, as semanas seguintes, os meses seguintes, e os anos seguintes...
15 anos depois a minha casa é invadida por estranhos durante a minha ausência. Levam dois portáteis, o leitor de DVD, 4 pequenas chaves de fenda, cerca de 5€ em moedas de 2 e 1 cêntimos, duas mochilas, dentro de uma delas duas pen's, as cadernetas das minhas contas bancáras e o meu cartão de empregado, na outra meia dúzia de meias de fato. A minha privacidade foi assaltada. Não me sinto seguro no meu pequeno espaço. Candidato-me a um lugar noutro departamento da minha empresa. Não estou confiante, a minha auto-estima sofreu um beliscão. Estou vulnerável, frágil, enfraquecido. Onde estão as minhas forças? Mais daqui a pouco vou refugiar-me dentro de uma sala de cinema, espero ao sair estar melhor e sorrir à minha amiga vendedora de castanhas.

2 comentários:

Anónimo disse...

Só te consigo enviar um grande beijo...

vero disse...

Obrigado!